20080824

Morte do poema

Esqueci os dias que passaram
Esqueci tudo sem querer,
e tinha uma esperança que ao esquecer
o mundo iria-se desfazer.
Tentei deixar a alma abandonada,
o corpo morto no chão,
a vida pendurada voltou,
caiu-me pesada nas mãos.
Sem volta a dar num retroceder sem fim
o vento apasiguou os meus olhos
a minha alma partiu sem mim.
Passaram-se horas,
dias de esquecimento,
momentos iguais
resumidos num só pensamento.
Mágoas de arrependimento
envoltas em aluminio de cozinha,
comi eu em Lisboa citadina
estendida no cimento.
Depois o betão e a gravilha
encheram-me até à garganta
lembrei-me então que era filha
da minha mãe que se ataranta.
Só posso ser filha de Homem
e bastarda de Deus,
mulher das insónias
praticante do Adeus.

20080819

Estrabismo amoroso

Arranca-me as unhas,
os olhos e a pele...
Tira-me tudo o que me liga a este mundo.
Devolve-me a Terra,
arranca-me o pudor,
quero apenas sentir os teus ossos,
descobrir o amor.
Leva-me onde quiseres,
dá-me o que puderes,
não mudes o mundo por mim,
nem se quer o que dele resta.
Dá-me a tua mão e esquece...
esquece o que eramos para o mundo,
esquece o que tinhamos.
Agora somos nada para o redor,
e tudo o que temos.
Estamos livres do mal
e de tudo o que tememos.
Neste instante nascemos.
Diz-me agora,
sem armas, defesas,
pele, unhas e olhos,
se ainda me sentes
junto das tuas entrenhas,
junto dos teus despidos ossos.

20080805

Fuzilados pelo Tempo

Peço desculpa aos leitores do meu medíocre blog. Tenho escrito bastante, no entanto temo que os meus textos não sejam sufecientemente apeteciveis para os vossos exigentes padrões. Este pareceu-me apropriado. Apesar de ser longo, lê-se bem. Foi apenas uma maneira que arrangei para reflectir sobre a vida e o tempo que gasto. Deliciem-se, e se não for o caso, sejam severos com os comentários !


O cão não se fartava de ladrar. Esganiçava-se como se não houvesse amanhã. Cuspia a saliva grotesca pelas finas fendas dos seus dentes afiados. O seu dono, familiarizado com a situação, olhava as nuvens desinteressado enquanto segurava a trela do cão.
- Olhe, desculpe. Talvez o cão queira alguma coisa, não acha? Torna-se um bocado incomodativo ouvir tão estridente ladrar. – Indagou alguém que depois de um passeio se decidiu sentar no banco tangente ao dono do cão.
- São chagas da vida. Também eu gostava que as nuvens falassem comigo, mas elas não falam. Em vez disso tenho o cão, que me preenche o vazio do silêncio. – Comentou o dono do cão, com um pesar amargurado de quem foi esquecido pelo mundo.
- Não diga isso, imagine-se você com 86 anos num banco de jardim como este. O que acha que vai pensar? Sabe, só vive no silêncio quem pede para assim viver. Você deve estar na flor da idade, pelo menos as rugas não se denunciam. Não acredita que ainda tem muito para viver? Pois olhe que tem, nem que sejam umas míseras horas até ao amanhecer. Olhe para mim, ainda ontem estava sentado a brincar com o meu irmão e desleixei-me no tempo. Quando dei por mim, já metade da vida se tinha passado. - Ditou o senhor alagado de nostalgia no olhar.
- Todos nós dizemos ao próximo o quanto não aproveitámos, alertamos para o desperdício. Mas quando somos novos nunca sentimos o efeito do desperdício, não temos medo de desperdiçar. O arrependimento é sinal de velhice. E eu, aos 25 anos já conheci essa sensação. Agora, sentido-me velho, perdi a vontade de gritar, de esperançar pela minha liberdade. – Disse o rapaz, ainda segurando o cão, mas sentado no banco ao lado do senhor.
- Rapaz, somos todos seres sem sentido. Nascemos e morremos sem saber bem porquê. Vivemos assolados de perguntas, muitas para as quais nem vamos ter respostas no final. Mas o grande mérito está em conseguir no meio disso tudo, arranjar espaço para viver. – Disse o senhor com os olhos postos no horizonte.
- Não passa por isso. Já há muito tempo esqueci as perguntas, quanto mais pedir as respostas. Esqueci-me de viver, julguei que o mundo vinha ter comigo e agora sinto todos os dias ao acordar o peso da solidão recostada nos meus ombros. Não estimei o que tinha. Ignorei as pessoas que me amavam e perdias de vez. – Continuou o rapaz. – Perdi o meu pai para uma cama e um ventilador e a minha mãe para a insanidade. Estão os dois fechados num hospital do qual não terão oportunidade de sair.
- Nestes únicos 86 anos que vivi não guardei arrependimentos. Não por nunca os ter tido, mas porque me livrei deles. Senti a raiva da dor, quando descobri que tinha um aneurisma e que poderia ser arrancado do mundo a qualquer momento. Quase que fui obrigado a deixar de sentir dor para que a meu instável cérebro não pudesse explodir de ansiedade. Percebi que mais valia viver um dia de cada vez, que viver um último dia e ser morto pela ansiedade de saber se vou viver o dia de amanhã. Aprendi a viver. Só tenho pena de o ter aprendido tão tarde. Agora já não há tanta emoção e vontade de vencer o mundo, como havia aos 25 anos. – Formulou o senhor calmo e sereno, como suspiros lentos de um vento levado para norte.
- Os dias passam e não me dizem nada, apenas me fazem avistar mais uma visita àquele velho e enferrujado hospital. Já tenho o cheiro de doença entranhado nas narinas. Tenho a casa vazia e estudos deixados a meio. As mulheres já não me excitam e como outrora acontecia, já não me fazem sonhar. Não tenho expectativas com ninguém. Já não espero nada de ninguém. Cansei-me de tudo. Das janelas sujas, das batas brancas, das notícias de piorias… – acabou por se calar. O sol começava a esgotar-se por detrás das colinas e a noite espreitava por um nicho de céu.
- Somos pequenas grandes criaturas que acabam por vencer as expectativas pessoais. Espero que um dia venças o mundo, como eu o venci. Todos merecemos vencê-lo. Estou farto de ver os jovens caírem como soldados abatidos nas trincheiras. O sol é grande e os seus raios são suficientes para iluminar todos nós. Olha o sol, esquece Deus e segue o que quer que seja o teu caminho. Não esperes mais por ninguém. – Acrescentou o senhor.
Olharam, os dois, o lago que estava à sua frente, um espelho de água cristalino onde em lufadas se passeavam os patos altivos. Não se viram lágrimas, sorrisos, ou gritos de louvor, de alegria ou de tristeza. Viram-se apenas dois pares de olhos diferentes. Uns gastos pelo tempo, esperando morrer. Outros procurando respostas para o tempo que viria. Olhos inertes, desconhecidos, esgazeados pelo mundo.