20090723

Dona Guida

Lá estava Dona Guida sentada, noutra manhã solarenga de Julho, à porta de sua casa. A casa era pequenina e tudo nela era pequenino: as portas, as janelas, as paredes, as ombreiras e o tecto era muito baixinho. Dona Guida, sentava-se sempre de manhã no degrau da porta da frente da casa.
Naquela manhã passei pela Dona Guida e como sempre dei-lhe os bons dias.
"Ai filha, chegou o meu Ernesto da Guerra!" exclamou Dona Guida desalinhada e com a sua bata floral a desviar a atenção das rugas vincadas do rosto.
" Que bom Dona Guida, que bom... Felicidades" disse-lhe eu e continuei rua fora.
Ernesto, o quarto filho de Dona Guida, morrera na Guerra do Ultramar, já há uns bons trinta e tal anos. Todos os dias, lá estava Dona Guida feliz, porque o Ernesto chegara do Ultramar. Que mentira tão doce inventara Dona Guida, para encontrar algum consolo. No inicio talvez tenha sido apenas um sonho que mais tarde tenha sido transposto para a realidade do seu dia-a-dia. Mas não podemos culpar a Dona Guida, esta mentira já é a sua vida vivida longe dos seus três outros filhos. Que vida solitária, no entanto tão doce e restrita tem a Dona Guida que diz que vem aí o Ernesto, mas nunca chega a vê-lo.
"Não sei que pense. Não sei que diga. Estou de férias."

Alguém da minha familia o disse e não discordo, por isso mesmo é que agora estando a estas horas da noite a escrever, sem pensar em ler o meu Saramago, vou dizer também o que não é mentira: deviam haver mais museus grátis em Portugal e sem ser só aos domingos.

20090715

Ventos da Lagoa

Vento que arrasta as mágoas,
atinge a minha pele,
leva, livra-me as lágrimas,
que já caem no papel.

Ao passar, diz ao mar,
que eu estou pronta,
espero para ele me levar,
daqui para outra ponta.

Sinto a raiva, a paz e o furor,
tudo ao mesmo tempo,
trás o vento
no seu esplendor.

O comboio das 19:07

A Lisboa das 19 horas, é uma Lisboa de estação de metro, comboio e vias rápidas. Toda a gente se dirige para o mesmo sítio: casa.
Apanhei o comboio das 19:07, em Entrecampos, para Meleças. Na plataforma, estava um mar de gente apinhado e todos, como que ansiosos, olhavam para o seu lado esquerdo, em busca da frente do seu transporte. A senhora da CP, que deve ser esbelta e bem maquilhada, deduzo eu pela sua bela voz, anunciou a chegada do comboio: "Atenção senhores passageiros: o comboio sub-urbano CP Lisboa com precedência de Roma-Areeiro e com destino a Mira Sintra - Meleças, vai entrar na linha número 2. Obrigada pela vossa atenção. À entrada para os comboios tenha atenção às portas e à plataforma." Entra o comboio pela estação a dentro. Os passageiros lá abrem as portas, agora com uns botões accionados pelo toque, e entram. O comboio está cheio. Eu tento entrar a tempo de arranjar um lugar para ler o meu livro do Saramago, mas aparecem uns quantos furões rápidos que atingem os acentos antes que o diabo esfregue um olho.
Passam as estações e depois de já ter dado uma boa pisadela numa senhora que estava, tal como eu em pé, atrás de mim e de sandálias, chegamos à estação da Amadora. A bonita estação já com um verde, que antes brilhante, agora é baço e meio viscoso apresenta-se como qualquer outra estação da Linha de Sintra: não se percebe se está suja, ou se já foi construída assim. Quando chega a altura dos passageiros entrarem na carruagem, surge uma senhora idosa, com o cabelo desgrenhado, vestida de preto, cara tresloucada e com a língua meia de fora. Ao mesmo tempo, entra uma senhora de meia idade, vinda com com certeza do seu local de trabalho. A senhora idosa vislumbra um lugar livre que está virado na direcção do movimento do comboio. Insanamente rápida a senhora idosa faz uma ultrapassagem brusca e correndo alcança o lugar que pretendia. A senhora de meia idade senta-se à sua frente, meia aparvalhada.
"Ai, é que eu não consigo ir no comboio se não for virada para a frente." disse a senhora idosa meia sorridente, justificando a sua corrida e ultrapassagem desnecessária.
A senhora de meia idade, olha-a como quem não quer saber. "Só quero chegar a casa..." deve ter pensado.
Com cara de louca a senhora idosa abre a mala e começa freneticamente à procura de algo. Encontra o telémovel e telefona a uma tal de Júlia. "Oh Júlia! Eu deixei a chave na porta?" perguntou.
Mais uma senhora idosa que se esquece das chaves na porta, tal como mais uma senhora idosa que corre rapidamente para o lugar que mais lhe convém. Talvez bastava pedir à senhora de meia idade para trocar de lugares. Mas nunca se sabe, e por isso mesmo é que esta senhora idosa quis correr em vez de esperar pela simpatia de outra pessoa.

20090711

Rita

A Rita entrou assim na minha vida: de repente.

Um dia acordei em casa da Avó Arlete e lá estava um bebé novo, deitado ao pé de mim, com uns olhos gigantes e sorridentes, seis meses mais novo que eu.

"Quem é esta?" pensei eu, se é que já conseguia articular algum pensamento... um bebé de 36 meses já pensa qualquer coisa.

Ela, alí, há espera que eu, a sua prima mais velha, desse o primeiro passo, olhou-me e começou a aproximar as suas mãos rechonchudas da minha cara. Tocou-me, riu-se.

Foi nesse dia que começou tudo: as brincadeiras, as lutas, as disputas pela comida e pelos triciclos, que acabou comigo a ficar com o mais pequeno e mais feiozo. Mas, acho que na realidade nem me importava.

A Rita. A Rita assistiu a tudo, aos choros, às mijadelas nas cuecas provocadas por ela, às tardes quentes de verão a correr no quintal, às explorações do quintal das vizinhas e principalmente aos ralhetes achinelados da avó.

Agora, quase todos os dias gozamos uma com a outra e inevitavelmente continuamos com o mesmo jeito de criança que tínhamos no primeiro dia em que nos conhecemos.

20090707

Enganos,
Sonhos,
Suposições,
Momentos,
Esquecimentos...

"Olá, sou eu. Vim hoje porque me esqueci de te dizer que te amo."