20090531

Paz inquieta

Fazemos o que nos apetece,
cometemos erros sem pressas,
esperamos, até que o mundo esquece,
as nossas desavenças.

Pomos para trás
aquilo que nunca foi resolvido,
pensamos ficar em paz,
mas de espírito enegrecido.

No final,
consumidos,
lembramo-nos que somos apenas nós,
pobres sobreviventes iludidos.

20090527

Unhas vermelhas

Unhas vermelhas de sangue,
arranham-me de alto a baixo,
furiosas e desdenhosas,
enquanto olhas de soslaio.

Sem pressa esfaqueiam-me,
abrem-me o peito,
impiedosas arrancam,
todo o mau alheio.

Sem jeito,
arrastam o meu corpo,
atiram bocados ensanguentados,
e eu vejo-os atingir as paredes
com os meus olhos atordoados.

Corre, que já nada tens de mim,
foge, que é hoje...
é hoje que eu morro aqui.

20090523

Senhora Dona "Esfregadeira" do Lago dos Cagados

Com a mesma vontade de sempre dirigi-me ao portão. Estava um dia de sol quente e eu como sempre, estava indisposta com toda aquela radiação solar. 
"Oh menino! Oh menino! Chega aqui, não sabes que é para se passar o cartão?"
Naquela manhã, a senhora da portaria, estava com o seu cabelo loiro todo armado com a normal tonelada de laca. Movia a suas mãos finas, com unhas compridas e pintadas com um vernis vermelho sangue, de uma forma ridícula quase que como para se gabar das suas fantásticas unhas minociosamente ornamentadas. A sua bata de um azul marinho, estava bem passada a ferro e livre de qualquer nódoa, como era costume. 
O rapaz, que já lá ia para as aulas, voltou-se em resposta ao grito da senhora da portaria e com cara de quem estava a ficar incomodado, voltou para trás. 
"Desculpa, mas eu não posso deixar-te passar! Se eu chegar aqui sem o meu cartão, nem almoço! Não é agora um aluno, que porque lhe apetece, não passa o cartão!" 
Com pouca vontade de responder, o rapazinho abre a mochila, tira o cartão e lá o passa. Vira costas e continua o seu dia.
A senhora loira da portaria, com os seus cinquenta e tantos anos, sorri vitoriosa com os seus dentes alinhados, voltando-se para o portão para continuar a sua vigia, lembrando-se que dali a uns minutos, lá teria de ir calçar as galochas para esfregar o lago dos cagados, pela segunda vez naquelas duas últimas semanas. 
Eu, depois de passar o cartão, lá entrei na escola e ao ver os meus colegas a entrar para dentro do pavilhão acelerei o passo, caso não fosse alguém pensar em marcar-me uma falta. 

20090512

Chove na cidade

O estuque com infiltrações,
as paredes humedecidas,
os homens mortos com canções,
retratos sangrentos das suas vidas.

As calçadas sujas,
os canteiros devastados,
rios de águas turvas,
onde navegam corações despedaçados.

O ar intoxicante,
o céu tingido de cinzento,
a minha mente asfixiante,
que se deixa levar pelo vento.

A chuva que molha as fachadas,
o meu guarda-chuva torto,
as minhas mãos geladas
e o meu andar silencioso.

O meu olhar que se apaga
no meu corpo cansado,
quer esquecer a mágoa
que se estende neste mundo depravado.